quarta-feira, setembro 27, 2006

Eyes Wide Shut




Não é a primeira vez que aqui passo mas só agora reparo...

Neste braço de estuário, esconderijo secreto de tão explícito, as águas, doce e salgada, vêm namorar na preia-mar. São águas felizes.

Os sulcos dos barcos na superfície acordam as margens de sua letargia e agitam a madeira de um velho casco, pela vida gasto. Quase recupera sua pose de navio, outrora dono e senhor do rio. Balouçando na proa, uma gaivota parece ainda lhe reconhecer algum brio.

No auge da maré cheia, esconde-se o leito sob o agri-doce rodopio. O ar, levemente adocicado por entre travos de maresia, pede uma pausa, tranquiliza, e até os fios dos pescadores que trespassam o húmido espelho demoram mais a vibrar.

Dali a nada, restará pouco mais que um lençol usado, desalinhado, vincado por ardores de amante e onde jaz seu odor delirante. À medida que recua de seu balzaquiano ninho este vai sendo por outros pássaros tomado. O regresso é certo e se a paixão nos torna alados, o rio parece ter com seus pares a magnânima indiferença dos apaixonados.

Eu, aqui ao longe mirando as pequenas garças, sinto-me quase velho, quase gasto, recordando as águas felizes...


"Nas nossas ruas, ao anoitecer,
Há tal soturnidade, há tal melancolia,
Que as sombras, o bulício, o Tejo, a maresia
Despertam-me um desejo absurdo de sofrer."
Cesário Verde, O Sentimento dum Ocidental

1 comentário:

Cuze disse...

mais uma vez, tou sem palavras!!
como ja tive oportunidade de te dizer "pessoalmente" escreve magnificamente bem e essa é uma ideia que se reforça a cada palavra que absorvo deste teu cantinho à beira mar plantado!
parabéns mais uma vez!! continua...
abraço